quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Desgoverno e niilismo

por Ricardo Goldbach

Como epílogo do deplorável espetáculo de despreparo que o governador Sérgio Cabral ofereceu ao Rio e ao mundo na noite de 15 de outubro, chega notícia, via Ancelmo, segundo a qual entre os presos pela PM (manifestantes que se encontravam na escadaria da Câmara dos Vereadores), está o pesquisador da Fiocruz Paulo Roberto de Abreu Bruno. O cientista, com quem não tenho a mais remota ligação, tem um nada magro currículo nas áreas de Engenharia Sanitária, Saúde Coletiva, Saúde Ambiental e Saneamento, além de passagens por História, Geografia e Antropologia Social, segundo me informa a Plataforma Lattes.

Pelo que aparenta ser falta de assunto (e de estofo suficiente para tratar de algum assunto), Rodrigo Constantino dedica-se, já em 16/10, ao seguinte trecho da Coluna do Ancelmo:

"Entre as 182 pessoas presas durante os conflitos entre polícia e manifestantes no Centro do Rio, ontem, está o professor e pesquisador Paulo Roberto de Abreu Bruno, da Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz. Segundo a entidade, ele tem como um dos principais objetos de estudo a pesquisa de movimentos populares urbanos. Desde junho, vem recolhendo material de campo e fazendo registro fotográfico das manifestações no Rio de Janeiro. Paulo Bruno atua também no campo da saúde coletiva e ambiental tanto em comunidades indígenas amazônicas como em favelas."

Num desafio simultâneo ao Direito e ao Jornalismo, o articulista da Veja conclui:

"E agora temos isso: um representante, professor e pesquisador da entidade envolvido com criminosos, baderneiros, vândalos que atacam a polícia e quebram coisas nas ruas."

Estranha e precipitadamente, Constantino esperava da Fiocruz uma "nota de repúdio pela participação de um dos seus nesses atos vergonhosos e criminosos".

Baixando a bola e indo por partes, começando pelo Direito: atribuir falsamente um crime a alguém é em si o crime de calúnia, previsto no art. 138 do Código Penal, e seu autor está sujeito a pena de detenção de 6 meses a 2 anos, além de multa. Não é à toa que o Estado de Direito (não confundir com estado de direita) promove a atuação dos tribunais e o estabelecimento do contraditório, alimentados, por um lado, por inquéritos instaurados pela Polícia Civil e apreciados pelo Ministério Público e, por outro lado, pelo direito à defesa. Passados apenas dois dias, ainda se está em fase de inquérito e de indiciamentos (espera-se também que haja inquérito sobre disparos de armas de fogo com munição letal, por parte da PM). Por enquanto, qualquer imputação de crime é... mera imputação de crime.

Quanto à ótica jornalística, nenhuma novidade para quem conhece os fundamentos do Jornalismo, ou mesmo para quem aprecia estar informado sobre o mundo ao seu redor: toda e qualquer veiculação de informação dever ser precedida por apuração, pela minuciosa verificação dos fatos reportados. Pelo bom senso, o preceito deve valer também para conteúdos autorais, de opinião; caso contrário, é descrédito para quem escreve e para quem veicula.

No texto publicado na Veja, há mera releitura distorcida do texto de outrem. Nesse ponto, Constantino desvia-se de um de seus ídolos, Ludwig von Mises, economista e filósofo austríaco, refratário ao nazismo, um dos pilares da Escola de Viena, que condenou a lógica do polilogismo (trabalhar com hipóteses antagônicas como se harmoniosas o fossem): "A humanidade precisa, antes de tudo, se libertar da submissão a slogans absurdos e voltar a confiar na sensatez da razão". Segundo esse apelo, "o polilogismo é tão intrinsecamente sem sentido que ele não pode ser levado consistentemente às suas últimas consequências lógicas". Dadas as carências de sensatez e razão no libelo que Constantino brande contra Paulo Roberto e a Fiocruz, sobra apenas um polilogístico tiro no próprio pé. Dizendo de outra forma, quem distorce o que quer atacar, acaba dando sopapos no ar.

Quanto á presença do cientista na Cinelândia, nada há de estranho em ele ter estado lá para recolher "material de campo e fazer registro fotográfico das manifestações no Rio de Janeiro", à luz da informação de que o preso tem "como um dos principais objetos de estudo a pesquisa de movimentos populares urbanos". Se é verdade ou mentira, a conclusão caberá a um tribunal, não a um economista afoito. A princípio, não vejo por que duvidar da Fiocruz. Como certeza, fica o fato de a PM só ter começado a agir horas depois do início do vandalismo, optando por deixar escapar o flagrante de arruaceiros  aí sim  em pleno quebra-quebra. E o governador Sérgio Cabral, diga-se, deve ser chamado às falas para responder por isso.

Outra coisa estabelecida até aqui é que atuar no setor financeiro não instrumentaliza alguém, automaticamente, a ler e interpretar corretamente uma simples nota do Ancelmo. Quanto à exacerbação desmedida de vieses ideológicos, isso já é material para outra enfermaria, basta comparar os títulos dos dois textos.

Afirmação de Ancelmo Gois: "Entre os presos, professor da Fiocruz, que pesquisa protestos"

Conclusão de Rodrigo Constantino: "Fiocruz tem representante entre os criminosos presos nas 'manifestações'"

Fica o convite à reflexão: vamos de informação ou de deformação?



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