domingo, 4 de abril de 2010

Sobre Orwell, Endemol e "Boninho"

Ricardo Goldbach

Um artigo de Ivana Bentes, professora, pesquisadora e diretora da ECO-UFRJ, traz considerações sobre o Big Brother Brasil. O texto é lúcido, apesar de não diferir em muito das demais avaliações críticas que já li, até mesmo quanto a merchandising. Nenhuma das resenhas faz uma leitura que considero relevante, sobre esta criação da Endemol. O que é feito pelo mundo afora - com a cumplicidade de um universo de candidatos a celebridades e suas torcidas de arquibancada fabricada, além de patrocinadores e diretores inescrupulosos - é desconstruir e eclipsar um ícone de terror e totalitarismo, o "Grande Irmão" de George Orwell. E totalitarismo é coisa contra a qual o escritor já havia lutado, ao cerrar fileiras com opositores de Franco, na Espanha fascista.

O Big Brother da obra "1984" é figura aglutinadora e diretora de um partido oficial, o único a decidir as políticas de economia, guerra e paz de um continente ajoelhado e subjugado pelo IngSoc (o partido do socialismo inglês). Nesta missão, o Grande Irmão é secundado por uma nomenklatura cujo matiz pode ser hoje em dia comparado a qualquer sabor de fascismo, quer à esquerda quer à direita de um centro para todos os efeitos conceitual e abstrato. A submissão é conseguida por meio da fabricação de verdades e da distorção de números e estatísticas, além de brutal repressão à opinião e ao pensamento, o que inclui a reinvenção do conteúdo semântico dos vocábulos. Mais ainda, o Grande Irmão detém o controle da câmera que invade a privacidade dos lares dos cidadãos, em busca de indícios de crimes insidiosos tais como ler, pensar e escrever.

O personagem principal, Winston Smith, tem como atividade profissional alterar o passado, reeditando páginas antigas do "Time", jornal oficial e único, ao sabor de necessidades e interesses do partido igualmente único. E Smith termina por incorrer no crime de pensar, pelo que paga caro - abdica de sua certeza literal de que "2+2=4", depois de perceber-se amedrontável e torturável, moralmente vulnerável como qualquer ser humano confrontado com seus limites físicos e psicológicos. E abdicar de si mesmo diante de um regime opressor acaba por mostrar-se como algo fatalmente humano, demasiadamente humano.

O que Endemol et caterva fazem, ao eclipsar e refrasear em centro de picadeiro o que deveria ser um convite à reflexão e à resistência, não é mais do que o próprio Smith fazia a mando do Partido - reescrever a história da política e da cultura, com vistas a atender interesses centralizados. No caso aqui, vender detergentes e televisores para uma massa disforme cujos olhos e pensamentos estão conturbados pelo excesso de areia que a tela atira em sua direção.

Ao nomear jovens despreparados, ocos e desesperançados como "brothers" e "sisters", o BBB não serve somente ao merchandising. Também - e principalmente - anestesia e deseduca. Com o sentido da câmera de vigilância invertido, com os lares vigiando os "privilegiados" pelo sistema, a Endemol e seus cúmplices atingem por plágio malicioso os mesmos objetivos do Grande Irmão, e o fazem praticando o newspeak conforme concebido pelo autor original. Sem direito a copyright defendido com garras e presas por batalhões de advogados.