Ricardo
Goldbach
Em
conversa recente com um empresário atento à qualidade dos produtos
da empresa que dirige, refletíamos os dois sobre o futuro do negócio
dele, no que se refere a existir uma real demanda por padrões
elevados – ou ao menos mínimos – de qualidade, daquilo que
nenhum dicionário define em termos absolutos, por impossível.
Busque-se por "qualidade", "quality", "quālis"
(a raiz latina do termo) ou pelo que seja, e chega-se à conclusão
de que qualidade é coisa que só se afere, valora ou identifica em
contraste com um ideal ou padrão já estabelecido, por decisão,
consenso ou descaso.
Lendo
o noticiário, divago sobre a qualidade de ensino e aferição que o
Brasil destina aos educandos de hoje, os que amanhã estabelecerão
padrões para aferir a qualidade de produtos e serviços (inclusive
os de ensino!). Para as autoridades brasileiras responsáveis pela
área, basta que a redação de um aluno de curso superior contenha
alguma alusão ao tema para que o conteúdo seja aceito. Para quem
está chegando agora, refiro-me a duas redações apresentadas em
exame do Enem que continham, de modo aparentemente provocador,
referências a receita de preparo de macarrão, uma delas, e trechos
completos de um hino de time de futebol, a outra.
Ocorre
que em ambos os casos os estudantes fizeram referências difusas à
"Imigração no século 21", o tema da redação. Assim,
segundo os critérios de qualidade vigentes, eles atenderam às
expectativas de quem maquinou o exame. Por motivos igualmente
obscuros, "trousse" pôde ocupar o lugar de "trouxe",
e "rasoável" pôde substituir "razoável", sem
qualquer prejuízo para outros examinandos que, apesar dos pesares,
conseguiram alcançar nota máxima. Vale lembrar que sem a imprensa
investigativa – essa eterna perseguida por regimes políticos
fechados ou em vias de discretamente sê-lo – esse descalabro, como
tantos outros, não teria vindo à tona, já que não depõe a favor
da elite decisória.
E
o que demandarão os futuros demandadores de qualidade? Muito pouco,
cada vez menos, imagino. Se o miojo e o hino do time foram meras
provocações, como alegam os estudantes (de cursos superiores, não
nos esqueçamos), outros sintomas da enfermidade cultural não
"trousseram" nenhuma esperança "rasoável".
Os
que têm saído dessa máquina de produzir estatísticas favoráveis,
conhecida como "ensino superior" ("superior a quê?",
pergunto, relativizando ainda mais o que já era relativo), já se
encontram em todas as áreas de atividade, aí incluídos os meios de
comunicação, em particular, e mesmo os controles de qualidade, em
geral. É justamente aí que o parafuso dá mais uma volta: quando se
lê coisas como "energia heólica" ou "métodos
pioneros" (JB online, 22/03) – para ficar em parcas e não
cansativas amostras do que seja a imprensa atual – é possível ver
um perverso efeito realimentador que, em ciclo vicioso, deprime o já
baixo padrão cultural médio dos brasileiros.
Não
penso que a grafia errada seja o pior dos efeitos. Com bastante
complacência (na verdade, com muito mais do que apenas isso),
pode-se argumentar, como já argumentaram autoridades da área
educacional, que o receptor da mensagem tomou conhecimento do teor,
assim como me lembro da validade linguística que já se conferiu a
"pegar os peixe". Prestar atenção aos erros, no entanto,
é o maior dos erros; é preciso antes observar o quadro com mais
atenção, com o que se chega à inevitável conclusão de que
aqueles desvios têm origem na falta do hábito da leitura – e é
aí que o que já é ruim caminha na direção de tornar-se pior.
A
simples leitura de jornais online e de posts no Twitter não resolve
a questão, já que o iletrado nada aprende com o semialfabetizado –
pode até involuir; uma busca por “energia heólica”, no Google
(a Barsa, a Britannica e a Delta Larousse dos admiráveis tempos
novos), já serve como ilustração disso. E lembro, mesmo que não
seja necessário, que a leitura não serve apenas para aprender ou
reter o uso correto de ortografia e gramática; serve (ou deveria
servir), antes de mais nada, como estímulo ao enriquecimento do
universo interior e ao exercício do pensar.
Já
escrevi por aí que "Se a juventude de hoje não sabe se Erich
Fromm é coisa de comer ou de passar no cabelo, a de amanhã poderá
ter dificuldade em escrever 'cabelo'" (“kblo”? “cabelu”?).
Do mesmo modo, o professor, escritor e dramaturgo Osman Lins (autor
do saboroso e certeiro texto "Reflexões sob um quadro-negro")
disse, em entrevista que li há pouco, que
“Os
dentistas têm observação que, com os liquidificadores, os dentes
das crianças tornaram-se mais fracos, mais vulneráveis e que
aumentaram enormemente as arcadas dentárias defeituosas. Há muitas
crianças que, com os liquidificadores, passaram mesmo a não
mastigar. Assim é possível que uma grande parte dos seres humanos –
até toda uma civilização, quem sabe? – abdique dos livros, em
benefício dos meios eletrônicos de comunicação.”
A
“energia heólica” está, em 2013, naquele mesmo JB no qual, nos
idos de 1980, aguardava-se o round seguinte da esgrima intelectual
entre José Guilherme Merquior e Eduardo Mascarenhas, com a mesma
ansiedade com que o público médio espera, atualmente, pelo próximo
capítulo de uma novela que esteja “pegando fogo”.
Chegando-se
(ou já se tendo chegado) a esse ponto, esvazia-se qualquer pretensão
de especular sobre como incrementar a qualidade de bens e serviços
culturais, a não ser como exercício de ganha-pão. No diagnóstico
de Theodor Adorno, o fruto da indústria cultural destina-se, em
última instância, a ser consumido durante as horas do “falso
lazer”, aquelas em que o consumidor apenas descansa e se distrai
entre duas jornadas de trabalho consecutivas. E parece certo que é
na direção do suprimento dessa ração que governo, sistema de
ensino, estudantes e mercado de trabalho – meios de comunicação,
em especial – têm ido.
A
proximidade da Páscoa, com o frenético celebrar de lendas sobre
coelhos e ovos (aliás, coelhos põem ovos?) me parece bom momento
para se rememorar esta outra lenda, a da educação de qualidade(?),
que produz ovos e miojos tão pouco nutritivos, indigestos, até.
Até.