Ricardo GoldbachAs discussões sobre a discutível decisão do STF são muitas vezes temperadas por paixões; de um lado, citações a Fernando Gabeira e Ricardo Kotscho, ambos bem-sucedidos representantes da ala dos sem-diploma, numa argumentação contrária à necessidade de graduação específica. Do outro lado estão posições apaixonadas em defesa do que poderia passar por uma legitimação de reserva de mercado ou por grita classista de igual teor.
Mas é preciso lembrar que o STF não está a serviço apenas do lógico, do razoável, do esperado ou do óbvio previamente codificado; como a própria instituição tem demonstrado nos últimos tempos, interesses políticos, patronais, menores mesmo, são ali fatores de determinação, numa evidência da falibilidade - de boa ou má-fé - que caracteriza os feitos humanos.
Se o que alegadamente se consegue agora, com a decisão do STF, é a universalização da liberdade de expressão, eu pergunto: se um julgamento em tribunal é uma manifestação argumentativa de posições contraditórias, porque não posso me candidatar ao exercício da função de Defensor Público? Ou de Promotor de Justiça? Afinal, possuo capacidades mínimas de expressão e argumentação que me permitissem a aventura. Mas já conheço a resposta: o exercício daquelas funções pressupõe conhecimentos acerca dos códices, da teoria, da praxis e da ritualística envolvidas nas lides processuais. Não seria o caso, então, de o STF informar-se melhor - isso mesmo, informar-se melhor - e levar em conta o que a ementa de um curso de Jornalismo efetivamente acrescenta ao cidadão que, a princípio, tem apenas mero gosto pela coisa? Do domínio das técnicas de reportagem à compreensão fundamental das categorias éticas e jurídicas envolvidas na abordagem jornalística de uma pauta, passando pelo estudo e meditação sobre os aportes humanísticos oferecidos por saberes tais como o da filosofia, sociologia e antropologia, não é pouco o que difere um escrevinhador de um jornalista, e para muito melhor, no caso em questão.
O exemplo de jornalistas famosos e não-diplomados, como Gabeira e Kotscho, não deve ser tomado como pá de cal no debate, uma vez que já houve um tempo na História no qual absolutamente nenhuma profissão era regulamentada. Ainda assim casas eram construidas, gado era transportado, abatido e vendido, mercadorias eram comercializadas em feiras, curandeiros curavam. Mas a ausência de regulamentação prévia não aboliu a necessidade de estabelecimento de códigos e normas de conduta profissional ou exigência de formação específica. Pelo contrário, qualquer profissão que hoje envolva responsabilidade moral ou material é muito bem regulamentada. E no que consiste o exercício do jornalismo, senão no fornecimento de um produto - informação apurada e tratada, com linguagem adaptada ao veículo - que pode causar danos morais e materiais em caso de defeito de fabricação?
Vejo também muita confusão ser causada pela mistura, em um único saco, das funções de repórter e de articulista, por exemplo. O primeiro cumpre pautas pré-definidas, sendo levado às tarefas de pesquisa, apuração de fatos e entrevistas, tudo para relatar algo de interesse da sociedade, com objetividade que rejeite os "achismos" e opiniões do profissional. A linguagem deve ser direta e correta, em texto bem encadeado e fiel a fontes gabaritadas e documentos idem. Já ao articulista, categoria em que são encontrados os contra-exemplos da atualidade, é permitida a expressão de opinião, em função de sua própria e notória trajetória pessoal ou profissional. Desta forma, se vê diariamente artigos escritos por médicos, advogados, filósofos, economistas e clérigos, sem que isso configure exercício ilegal de profissão.
A argumentação favorável à liberalização do exercício da profissão de jornalista, segundo a qual a Lei de Imprensa era um entulho do autoritarismo a ser removido, também não se sustenta. Pelo contrário, o "é proibido proibir", que surgiu na França como resposta aos tempos de treva dos anos 60, tem desaguado cada vez mais em leniência e permissividade, num movimento pendular oposto, que confunde autoridade com autoritarismo, e que produziu efeitos até na educação de crianças e adolescentes, uma vez que reprimir "é feio", passou a ser politicamente incorreto.
Como subproduto benéfico da decisão do STF, tenderão a sobreviver as instituições realmente capacitadas e dedicadas à formação de profissionais; aquelas a que se convencionou chamar de caça-níqueis tenderão a desaparecer, sepultadas pelo ainda menor valor dos diplomas que imprimem e vendem em prestações mensais.
Por fim, como exemplo extremo de ataque a uma suposta reserva de mercado, descubro texto no site do Observatório da Imprensa, de autoria do jornalista Maurício Tuffani. A
peça é coalhada de citações, reproduções e até mesmo de expressões matemáticas - que se estendem por três estéreis parágrafos - tudo em formato reconhecidamente acadêmico. Chega a lembrar o que o psicanalista Eduardo Mascarenhas, opositor intelectual de José Guilherme Merquior, classificava de "terrorismo bibliográfico", tamanha a intenção de fazer o leitor perder-se ao acompanhar a ancoragem dos argumentos em terceiros eruditos.
Vertendo para a forma textual minha resposta à Lógica Proposicional de Primeira Ordem empregada por Tuffani para desqualificar por completo a necessidade de diploma para o exercício da profissão de jornalista, e igualmente empregando aquela lógica, me restou concluir, em resposta ao autor, que:
- favelas consistem de uma enormidade de edificações erguidas em encostas de substrato rochoso, de configurações topográficas e geológicas de contorno sabidamente não trivial;
- as ditas edificações, como também se sabe, são erigidas por pedreiros, carpinteiros, mestres de obra e assemelhados;
- logo, não é necessário que alguém seja diplomado em Engenharia Civil para construir, com sucesso, casas em encostas de formação geológica rochosa, quod erat demonstrandum.
Mas prefiro me alinhar com o professor de Legislação e Ética no curso de Jornalismo da Univali (SC), doutorando em Jornalismo na USP e Assessor de Comunicação do Ministério Público da Federal, Rogério Christofoletti, quando ele
diz que:
"Dispensar o diploma hoje é como rasgar o documento do obstetra e reconvocar a parteira em seu lugar. Ela pode ser hábil, atenciosa e certeira, mas não teve acesso aos conhecimentos do médico, não dispõe das mesmas condições de operação e expõe as gestantes a riscos maiores. Tempos atrás, quase não havia obstetras, e sempre se recorria às parteiras. Mas o tempo passou, e jogar o diploma do médico no lixo é voltar atrás, permitir-se involuir".