terça-feira, 30 de junho de 2009

Ações afirmativas, resultados negativos

Ricardo Goldbach

(foto de Christopher Capozziello, The New York Times)
O Corpo de Bombeiros de New Haven, cidade do estado de Connecticut, realizou, no ano de 2003, exames para promoção aos postos de tenente e capitão. Como nenhum candidato negro conseguiu ser aprovado, a prefeitura houve por bem anular o exame, alegando que não queria ferir as leis dos direitos civis, vigentes desde a década de 1960. Em português claro, a administração temia processos judiciais por discriminação racial. Os 19 bombeiros brancos aprovados recorreram à Corte de Apelações e foram derrotados, mas uma decisão tomada pela Suprema Corte norte-americana neste dia 29 de junho reverteu a primeira sentença, por cinco votos contra quatro, expondo os limites do que se convencionou chamar de ação afirmativa, também conhecida como "discriminação positiva". De acordo com o voto do juíz Anthony M. Kennedy,
fear of litigation alone cannot justify an employer’s reliance on race to the detriment of individuals who passed the examinations and qualified for promotions.
(o mero receio de litígio não justifica que um empregador tome decisões com base em questões raciais, em detrimento dos indivíduos que foram aprovados e se qualificaram para as promoções).
Uma coisa é lutar para que seja assegurado a um cidadão negro o direito de sentar-se em um ônibus, sem a obrigatoriedade de cessão do lugar a um branco, como o fez Martin Luther King, com o posterior apoio de John F. Kennedy, nas décadas de 1950 e 1960. Outra coisa seria considerar válidos somente os concursos que tivessem representantes da etnia negra ou de qualquer outra, "positivamente discriminada", entre os aprovados.

Aparentemente, na raíz das distorções cometidas em nome da democracia está justamente a distorção do conteúdo semântico de "democracia". Com o significado original de "governo exercido em nome do povo" (demos kratein), "democracia" passou, por corruptela, a designar incorretamente o exercício da democracia direta (governo exercido diretamente pelo povo), o que termina por abrigar reivindicações de direitos abusivos, ou mesmo imaginários.

Um bom exemplo desta distorção são as eleições para elaboração da lista de candidatos a reitor das universidades públicas brasileiras. Votam alunos, professores, funcionários de segurança e conservação patrimonial, ainda que com pesos diferentes por categoria. Esta assim chamada "congregação" não tem plenas condições de avaliar os méritos administrativos e acadêmicos dos candidatos, e por vezes tornam-se dócil massa de manobra de movimentos sindicalistas, cujos projetos de poder ultrapassam as fronteiras da academia. Esta também é a opinião de Jacques Schwartzman, professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG e ex-membro da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional da Educação:
"... com algumas exceções, só disputa a eleição quem tem capacidades histriônicas e políticas. Pouco importa a qualidade como administrador. A equipe do reitor também acaba por refletir a composição política que o elegeu, e não necessariamente os mais aptos".
Basta conversar com alunos que convivem com os agraciados pelo sistema de cotas, nas universidades, para se constatar o quão perverso é o resultado. Aulas de "nivelamento" são insuficientes para dotar os quotistas de capacidade para acompanhamento das aulas convencionais, e o resultado é o nivelamento do conteúdo, por baixo. Que profissionais podem sair de tal sistema de ensino, senão os frutos estragados deste nivelamento? Pode parecer "politica" ou "racialmente" incorreto, mas o fato é que cabe ao Estado prover melhor preparo ao ingresso na universidade, ao invés de loteá-la, num processo de diminuição da qualidade de ensino. A pretensa compensação não vale, em absoluto, o irreparável estrago causado.

Enquanto as vagas nas universidades públicas brasileiras são franqueadas - num grotesco e populista processo de mea culpa - a quem não tem mérito intelectual minimamente suficiente, em New Haven, pelo menos, os mais aptos comandarão os bombeiros. Independentemente da pigmentação da pele, como deve ser, já que o fogo não reconhece políticas de cotas.


sábado, 20 de junho de 2009

Sobre jornalistas não diplomados

Ricardo Goldbach

As discussões sobre a discutível decisão do STF são muitas vezes temperadas por paixões; de um lado, citações a Fernando Gabeira e Ricardo Kotscho, ambos bem-sucedidos representantes da ala dos sem-diploma, numa argumentação contrária à necessidade de graduação específica. Do outro lado estão posições apaixonadas em defesa do que poderia passar por uma legitimação de reserva de mercado ou por grita classista de igual teor.

Mas é preciso lembrar que o STF não está a serviço apenas do lógico, do razoável, do esperado ou do óbvio previamente codificado; como a própria instituição tem demonstrado nos últimos tempos, interesses políticos, patronais, menores mesmo, são ali fatores de determinação, numa evidência da falibilidade - de boa ou má-fé - que caracteriza os feitos humanos.

Se o que alegadamente se consegue agora, com a decisão do STF, é a universalização da liberdade de expressão, eu pergunto: se um julgamento em tribunal é uma manifestação argumentativa de posições contraditórias, porque não posso me candidatar ao exercício da função de Defensor Público? Ou de Promotor de Justiça? Afinal, possuo capacidades mínimas de expressão e argumentação que me permitissem a aventura. Mas já conheço a resposta: o exercício daquelas funções pressupõe conhecimentos acerca dos códices, da teoria, da praxis e da ritualística envolvidas nas lides processuais. Não seria o caso, então, de o STF informar-se melhor - isso mesmo, informar-se melhor - e levar em conta o que a ementa de um curso de Jornalismo efetivamente acrescenta ao cidadão que, a princípio, tem apenas mero gosto pela coisa? Do domínio das técnicas de reportagem à compreensão fundamental das categorias éticas e jurídicas envolvidas na abordagem jornalística de uma pauta, passando pelo estudo e meditação sobre os aportes humanísticos oferecidos por saberes tais como o da filosofia, sociologia e antropologia, não é pouco o que difere um escrevinhador de um jornalista, e para muito melhor, no caso em questão.

O exemplo de jornalistas famosos e não-diplomados, como Gabeira e Kotscho, não deve ser tomado como pá de cal no debate, uma vez que já houve um tempo na História no qual absolutamente nenhuma profissão era regulamentada. Ainda assim casas eram construidas, gado era transportado, abatido e vendido, mercadorias eram comercializadas em feiras, curandeiros curavam. Mas a ausência de regulamentação prévia não aboliu a necessidade de estabelecimento de códigos e normas de conduta profissional ou exigência de formação específica. Pelo contrário, qualquer profissão que hoje envolva responsabilidade moral ou material é muito bem regulamentada. E no que consiste o exercício do jornalismo, senão no fornecimento de um produto - informação apurada e tratada, com linguagem adaptada ao veículo - que pode causar danos morais e materiais em caso de defeito de fabricação?

Vejo também muita confusão ser causada pela mistura, em um único saco, das funções de repórter e de articulista, por exemplo. O primeiro cumpre pautas pré-definidas, sendo levado às tarefas de pesquisa, apuração de fatos e entrevistas, tudo para relatar algo de interesse da sociedade, com objetividade que rejeite os "achismos" e opiniões do profissional. A linguagem deve ser direta e correta, em texto bem encadeado e fiel a fontes gabaritadas e documentos idem. Já ao articulista, categoria em que são encontrados os contra-exemplos da atualidade, é permitida a expressão de opinião, em função de sua própria e notória trajetória pessoal ou profissional. Desta forma, se vê diariamente artigos escritos por médicos, advogados, filósofos, economistas e clérigos, sem que isso configure exercício ilegal de profissão.

A argumentação favorável à liberalização do exercício da profissão de jornalista, segundo a qual a Lei de Imprensa era um entulho do autoritarismo a ser removido, também não se sustenta. Pelo contrário, o "é proibido proibir", que surgiu na França como resposta aos tempos de treva dos anos 60, tem desaguado cada vez mais em leniência e permissividade, num movimento pendular oposto, que confunde autoridade com autoritarismo, e que produziu efeitos até na educação de crianças e adolescentes, uma vez que reprimir "é feio", passou a ser politicamente incorreto.

Como subproduto benéfico da decisão do STF, tenderão a sobreviver as instituições realmente capacitadas e dedicadas à formação de profissionais; aquelas a que se convencionou chamar de caça-níqueis tenderão a desaparecer, sepultadas pelo ainda menor valor dos diplomas que imprimem e vendem em prestações mensais.

Por fim, como exemplo extremo de ataque a uma suposta reserva de mercado, descubro texto no site do Observatório da Imprensa, de autoria do jornalista Maurício Tuffani. A peça é coalhada de citações, reproduções e até mesmo de expressões matemáticas - que se estendem por três estéreis parágrafos - tudo em formato reconhecidamente acadêmico. Chega a lembrar o que o psicanalista Eduardo Mascarenhas, opositor intelectual de José Guilherme Merquior, classificava de "terrorismo bibliográfico", tamanha a intenção de fazer o leitor perder-se ao acompanhar a ancoragem dos argumentos em terceiros eruditos.

Vertendo para a forma textual minha resposta à Lógica Proposicional de Primeira Ordem empregada por Tuffani para desqualificar por completo a necessidade de diploma para o exercício da profissão de jornalista, e igualmente empregando aquela lógica, me restou concluir, em resposta ao autor, que:
  1. favelas consistem de uma enormidade de edificações erguidas em encostas de substrato rochoso, de configurações topográficas e geológicas de contorno sabidamente não trivial;

  2. as ditas edificações, como também se sabe, são erigidas por pedreiros, carpinteiros, mestres de obra e assemelhados;

  3. logo, não é necessário que alguém seja diplomado em Engenharia Civil para construir, com sucesso, casas em encostas de formação geológica rochosa, quod erat demonstrandum.

Mas prefiro me alinhar com o professor de Legislação e Ética no curso de Jornalismo da Univali (SC), doutorando em Jornalismo na USP e Assessor de Comunicação do Ministério Público da Federal, Rogério Christofoletti, quando ele diz que:

"Dispensar o diploma hoje é como rasgar o documento do obstetra e reconvocar a parteira em seu lugar. Ela pode ser hábil, atenciosa e certeira, mas não teve acesso aos conhecimentos do médico, não dispõe das mesmas condições de operação e expõe as gestantes a riscos maiores. Tempos atrás, quase não havia obstetras, e sempre se recorria às parteiras. Mas o tempo passou, e jogar o diploma do médico no lixo é voltar atrás, permitir-se involuir".

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Economia e Sincronicidade


Num desses acasos que insistem em acontecer, imediamente após o post sobre Franco Modigliani recebo por e-mail a fábula abaixo, que faço questão de compartilhar aqui.

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"Numa pequena vila na costa sul da França chove e nada de especial acontece. A crise é sentida. Todo mundo deve a todo mundo. A população está carregada de dívidas...

Subitamente, um rico turista russo chega ao foyer do pequeno hotel local. Ele pede um quarto e coloca uma nota de cem Euros sobre o balcão. Pede uma chave de quarto e sobe ao 3º andar para inspecionar o quarto que lhe indicaram, na condição de desistir se não lhe agradar.

O dono do hotel pega a nota de €100 e corre ao fornecedor de carne a quem deve €100. O talhante pega o dinheiro e corre ao fornecedor de leitões a pagar €100 que devia há algum tempo.

Este, por sua vez, corre ao criador de gado que lhe vendera a carne e este corre a entregar os €100 a uma prostituta que lhe cedera serviços a crédito. Esta recebe os €100 e corre ao hotel a quem devia €100 pela utilização casual de quartos para atender clientes.

Neste momento, o russo desce à recepção e informa ao dono do hotel que o quarto proposto não lhe agrada, pretende desistir e pede a devolução dos €100. Recebe o dinheiro e sai.

Não houve neste movimento qualquer lucro ou valor acrescido. Contudo, todos liquidaram as suas dividas e estas pessoas da pequena vila costeira agora encaram o futuro com otimismo.

Dá o que pensar..."


Abrindo uma exceção, para Franco Modigliani

ou "uma previsão sobre o estouro da 'bolha' econômica"

Ricardo Goldbach

Vou fazer um Ctlr-C / Ctrl-V, apesar do motto deste blog.

O caso é que o laureado com o Prêmio Nobel Honorário de Economia de 1985, Franco Modigliani, merece ser reconhecido por sua visão inteligente e premonitória, apesar de a premonição não ser aqui um dom metafísico, mas antes uma capacidade de interpretar fenômenos e acontecimentos dos processos econômicos que, queiramos ou não, regulam nossas vidas. Reproduzo aqui uma brilhante antecipação daquele economista, falecido em 2003, do momento que vivemos, em tempos de crise econômica de escala planetária, na forma de matéria de Floyd Norris, originalmente veiculada no The New York Times em 01/04/2000, e posteriormente reproduzida no Estado de São Paulo e no site do Observatório da Imprensa. É leitura de qualidade.

Observação: o prêmio ao qual a matéria de Norris faz alusão, o Nobel Memorial Prize de Economia, não tem associação direta com os desígnios originais de Alfred Nobel ou com o Prêmio que leva seu nome. À época da concessão, tal distinção levava o nome de Prêmio Sveriges Riksbank de Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel. Esta associação entre o prêmio concebido pelo Banco da Suécia e o nome de Nobel é repudiada pelos herdeiros do inventor sueco, segundo matéria do Le Monde Diplomatique veiculada na edição online de 12/02/2005, assinada por Hazel Henderson. Uma versão traduzida desta matéria pode ser encontrada aqui, sob o título "A impostura do Nobel de Economia". No entanto, o site oficial do Prêmio Nobel faz menção a Modigliani como sendo o laureado em Economia, no ano de 1985.

Vamos ao Ctrl-V da matéria de Floyd Norris, que é o que interessa.

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Nobel de economia prevê estouro da ‘bolha’


"Franco Modigliani afirma que a atual mania por ações da Internet e de outras companhias de tecnologia não é irracional. Entretanto, é uma bolha, e vai explodir. ‘Posso mostrar, com precisão, que há dois preços para uma ação’, afirmou Modigliani, em entrevista telefônica. O preço que ele prefere é o baseado em fatores fundamentais, como lucros e índices de crescimento.

‘Mas’, acrescentou, ‘a bolha é racional, de certa forma.’ A expectativa de crescimento produz o crescimento, que confirma a expectativa. As pessoas comprarão a ação porque seu valor aumentou. ‘O problema é que o preço de bolha é naturalmente instável’, admitiu. ‘Ele só continuará a aumentar enquanto as expectativas continuarem a crescer’, diz. ‘Mas assim que os investidores se convencem de que determinada ação não está aumentando, nenhum deles estará disposto a manter um papel pelo fato de ele estar supervalorizado.’ Farão questão de vendê-lo e a ação cairá abaixo do preço determinado pelos fundamentos.

Modigliani sabe alguma coisa sobre isso. Atualmente com 81 anos, ele recebeu o Nobel Memorial Prize de Economia em 1985, em parte por causa do seu trabalho pioneiro, desenvolvido justamente em torno da análise dos fundamentos.

Um de seus ‘insights’ - que pareciam estranhos na década de 50, quando ele propôs suas teses pela primeira vez - foi o de que o preço dos valores mobiliários de uma companhia, inclusive o de ações e obrigações, deveria basear-se nos lucros esperados, descontados a uma taxa de juros apropriada. Isso também se aplica ao mercado de ações como um todo.

Sob essa luz, não é fácil racionalizar as gigantescas relações preço/lucro.

Modigliani argumenta que é impossivel, para a economia, crescer tão rapidamente quanto o mercado parece estar prevendo, ainda que algumas companhias venham a ter resultados muito bons.

‘Não se pode acreditar que os lucros das companhias continuarão a aumentar, sempre, na proporção de 7%’, enfatizou Modigliani. ‘Em algum momento, toda a renda nacional será tomada pelos lucros.’ Esses cálculos podem ser ignorados quando os investidores julgam estar testemunhando a chegada de uma nova era brihante, como ocorreu na década de 20 com o broadcasting e está acontecendo agora com a Internet. O presidente Bill Clinton será o anfitrião da Conferência sobre a Nova Economia, que se realizará na Casa Branca, na próxima semana.

Modigliani não é um homem dado a falar muito sobre o mercado de ações com freqüência. Telefonei-lhe depois de ouvir dizer que ele havia falado sobre bolhas em um discurso pronunciado na sede da Boston Security Analysts Society. No único discurso que havia dirigido anteriormente àquele grupo, em 1976, Modigliani havia caçoado de Wall Street por subvalorizar as ações.

Ele acha que as ações que compõem a Média Industrial Dow Jones poderiam cair para 8.000 ou 9.000 pontos, mas acha que as ações de companhias de tecnologia são muito mais vulneráveis. No caso da Internet, é muito dificil determinar os fundamentos para compreender até que ponto se trata de uma bolha’, afirmou. ‘Na minha opinião, há muito de bolha nessas ações.’ E então? ‘Não há bolha que se esvazie sem fazer barulho. Por sua própria natureza, a bolha tem de explodir. Eu não sei quando.’ Mas isso acontecerá e a dor será maior se a bolha for grande. Ele acredita que o Federal Reserve (o Banco Central dos EUA) tem razão em aumentr as taxas de juros, mas talvez esteja agindo lentamente demais.

Não é dificil encontrar administradores que admitam, em particular, que estão petrificados, mas seus portfólios estão plenamente investidos. A maioria deles estudou Modigliani na Escola de Administração de Empresas. A maioria viu seus pares que não compraram as ações mais ‘quentes’ perderem os respectivos empregos. Seu nervosismo aumenta com a volatilidade do mercado.

Modigliani começou a vender ações há cerca de um ano e não se desculpa por isso. ‘As únicas pessoas que se saíram bem em 1929 foram aquelas que venderam cedo demais’, afirmou. ‘O teste final ocorrerá se houver um colapso. Se não houver, eu estou enganado.’"