quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Round 6: um BBB com esteroides

por Ricardo Goldbach


Alerta: pode ou não conter spoiler.

“Não confiamos nas pessoas porque são confiáveis, mas porque são nossa única solução.”

O frisson causado pela série Round 6 fez surgirem na mídia artigos e comentários, que li em diagonal. A tônica do meu apanhado versava sobre a série ser ou não produto próprio para consumo infantil, e foi o que me bastou para uma maratona investigativa – e ainda bem que são apenas nove episódios.

Esteticamente, não dá para não enxergar Escher no feerismo de formas e cores que pontua algumas cenografias. Os coloridos seguem o gosto pelos tons pastel das cores cítricas que agradam a tantos orientais. Mas, tirando-se a referência ao artista holandês e as citações à música clássica ocidental, Round 6 bem poderia se passar em uma casa com piscina, salão e vários quartos, todos com decoração multicolorida e infanto-juvenil, como aquela de Jacarepaguá.

É curioso observar como a produção coreana devolveu às câmeras de CFTV a condição que originalmente tiveram em “1984”; tanto jogadores quanto guardas-carcereiros são observados pelo poder central – o Big Brother asiático que substitui o Partido –, e não pelo público hipnotizado diante das tretas programadas pelo poderoso chefão concebido e parido nos Países Baixos e depois clonado mundo afora.

Diferentemente da atração da Endemol, Round 6 não tem as interrupções para intervalos comerciais nem o merchandising invasivo e gritante que garante o salário dos funcionários e financia a logística de funcionamento do set. Mais para o final, a mão invisível do mercado é explicitamente desvelada.

Também ao contrário de BBB, os participantes do zoológico humano oriental não imaginam usar o dinheiro do prêmio para comprar uma casa para os pais, abrir um restaurante ou dar a volta ao mundo. Por razões diversas, todos acumularam dívidas literalmente impagáveis, seja com o fisco, com a justiça ou com agiotas violentos. Os prêmios que eles perseguem às custas das próprias vidas representam simplesmente a chance de escapar das prisões e dos cemitérios do mundo exterior, do lá fora, como eles dizem.

Assim como fazem os brasileiros aspirantes a subcelebridades e a estrelas de anúncios comerciais, jogadores sul-coreanos de diferentes estratos formam panelinhas com o intuito de verem aumentadas as suas chances de sobrevivência, e as diversas subtramas de apoio indicam as afinidades que moldam as equipes, cujos membros podem ser tachados de “bons” ou “maus”. O bons optam por apoio mútuo e trabalho em equipe, altruísmo e bons exemplos têm lugar; já os maus traem, são egoístas, cometem assédio sexual e furam a fila do refeitório. Quando a coisa ruma para o desfecho, no entanto, acaba virando o vale-tudo histérico que se vê no BBB.

De qualquer modo, assim como a produção da Globo, Round 6 não deveria estar ao alcance de crianças; não apenas pelas cenas de violência e carnificina que Hollywood já se encarrega de levar às telas de cinema e da TV vespertina, mas por representar tão bem um lucrativo BBB em escala ampliada por esteroides.

sexta-feira, 13 de março de 2020

O idioma ele está ferrado e mal pago

por Ricardo Goldbach

Hoje em dia muito gente chama muita gente de "gado" quando se trata de "debate político" nas redes. Mas o fato é que todos esses tendem a ter mesmo um comportamento de manada.


Veja-se o cacoete, que eu chamo de "pronomismo", que um pífio jornalismo televisivo tem se encarregado de disseminar, que já contamina cidadãos comuns e autoridades:

"A inflação ela vai subir", "A chuva ela vai continuar", "O presidente ele vai viajar"...

Agora a coisa está migrada da linguagem falada para a escrita. E, se a impregnação pelo ouvido se dá em planos tão funcionais quanto a fala e a escrita, o que dizer dos planos ideológico e emocional que tanto têm servido à polarização incentivada pelo lulofanatismo?

Pois é, não custa observar.




domingo, 22 de dezembro de 2019

"PARA O BONDE QUE EU QUERO VOLTAR"

por Ricardo Goldbach

Um texto com o título acima chegou a mim, um texto daqueles que evocam lembranças de um tempo que passou há tempos e de um Rio de Janeiro que não existe mais, com citações de nomes de boates, supermercados, cinemas e de outros marcos quê, com o passar do tempo, passam a integrar o nosso acervo de memórias afetivas.

Não é texto que eu escrevesse; o tema está mais para as reminiscências partilháveis com amigos em churrasco ou evento igualmente descompromissado com limites horários e/ou etílicos.

E por que estou escrevendo sobre ele? Porquê, simplesmente, de repente me vejo alçado ao patamar de uma Clarice Lispector, de um Rubem Alves ou de um Luis Fernando Veríssimo, e de todos aqueles que são citados como autores de textos que jamais escreveram.

Isso mesmo, ele é encontrável em blogs e postagens no Facebook, com o curioso rodapé "By@RicardoGoldbach". Pois é, pesquisei e encontrei essa "minha obra" em postagem de blog (19/09/2019), em postagem no Facebook (21/03/2019), e ele existe até sem citação de autoria em postagem mais antiga no Facebook (10/10/2018).

O fato é que resolvi espanar a poeira deste meu blog para registrar que "PARA O BONDE" não é coisa gestada no meu teclado. Meno male que tenha teor saudosista e seja singelamente saboroso; meu byline podia estar associado a coisa pior -- um pequeno manual de autoajuda, um tosco ataque à Lava Jato ou uma candente apologia a crimes políticos.

É isso. Segundo rezava a filosofia romena do séc. XIV, o que está registrado, registrado fica.

Abraços, beijos e Boas Festas!

domingo, 24 de setembro de 2017

Glock in Rio News

por Ricardo Goldbach

Não consigo deixar de ver, nas operações das Forças Armadas que visam impor trégua às guerras entre traficantes, o serviço de proteção a uma visível reserva de mercado.


Como todos os papelotes do Rio sabem, cada morro tem um dono, que dá ordens às tropas mesmo quando está preso (onde estão os bloqueadores de celulares e os parlatórios com isolamento?). Em condições normais de temperatura e pressão, é business as usual: chega na favela um novo lote de mercadoria, que depois é fracionada e distribuída aos alegres consumidores do asfalto. Um PM prende um pé-de-chinelo aqui, outro pega a sua mesada ali, e a modorrenta rotina prossegue.


No entanto, quando um traficante tenta se apoderar do território de outro, entram em cena as diversas instâncias de autoridades que, durante dias ou mesmo semanas, discursam, concordam, discordam e telegrafam aos bandidos que algo grande está para acontecer. É disso, desse aviso prévio, que a marginália precisa para esconder arsenais, paióis e mercadorias, e estabelecer táticas de confronto e rotas de fuga.

Encerrada a guerra, com o retorno da "sensação de segurança", o dono do morro (ou seu sucessor imediato) estará seguro para comemorar a ajuda que recebeu das tropas federais. No day after, asseguradas a reserva de mercado e a expulsão da quadrilha inimiga, tudo volta ao estadual, volta a ser business as usual: chega na favela um novo lote de mercadoria, um PM prende um pé-de-chinelo aqui, outro pega sua mesada ali, e a modorrenta rotina prossegue, até que nova disputa se inicie em alguma viela desse imenso Complexo do Rio de Janeiro que um dia já foi cidade.