terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Entrevista - O paciente terminal na UTI e os Cuidados Paliativos

Cuidando do paciente, de seus familiares e da equipe de saúde - para além dos fármacos


Ricardo Goldbach

O conceito de Cuidados Paliativos (CP) é uma categoria da especialidade de Medicina Intensiva que visa proporcionar alívio a pacientes terminais internados em uma UTI. Estes cuidados, que vão além da diminuição do sofrimento físico propriamente dito, estendem-se também aos familiares do paciente e à equipe hospitalar envolvida. A entrevista a seguir foi concedida, em 2008, pelo médico nefrologista, coordenador da rotina de CTI do Hospital Pró-Cardíaco e professor concursado de Clínica Médica da Unirio, com MBA em Gestão de Serviços de Saúde pela FGV, João Luiz Ferreira Costa.

RG  - Uma vez que a dig­nidade humana é o foco central dos CP, quais são as características necessárias a um profissional que atue diretamente com um paciente de UTI, esteja este em estado terminal ou não?

JLFC - Em primeiro lugar, o conhecimento técnico do profissional em relação ao diagnóstico primário do paciente, ao diagnóstico que determinou sua internação na UTI. Em seguida, o conhecimento técnico em relação ao tratamento técnico resolutivo e paliativo. Não adianta apenas fornecer a morfina, é necessário o en­tendimento do mecanismo da dor. Por exemplo, a fisioterapia passiva, que evita a imobilidade articular, pode ser tão ou mais importante que o fármaco.

O profissional deve, ainda, ter completo entendimento anamnésico da história patológica pregressa, psicológica, familiar e sócio-econômica do paciente, resgatando valores evolutivos de vida e sociológicos, sem se esquecer dos valores religiosos envolvidos.

RG - Qual é a importância do conhecimento do médico sobre o ambiente sócio-familiar do paciente?

JLFC - O médico deve entender a família, familiares consanguíneos e pessoas relacionadas, envolvidas com o cuidado e a vida afetiva do paciente. Deve envolver a família, com suas facilidades e dificuldades de relacionamente entre si, com o paciente e com a equipe de saúde, bem como os conflitos envolvendo todo esse universo, até mesmo os burocráticos e financei­ros relativos à cobertura de saúde, como elementos indissociáveis do plano de CP. Isto pode significar até mesmo o envolvimento de profissionais usualmente estranhos à área da saú­de, tais como gerentes de banco e advogados.

O especia­lista deve ser capaz de iden­tificar, no univer­so familiar do paciente, o responsável pelo seu cuidado direto, o responsável pela administração do patrimônio e o responsável legal pelo paciente – podem ser uma ou mais figuras. Uma vez identificados os personagens, usá-los para atenuar e eventualmente resolver esses conflitos.

É preciso entender conflitos como oportunidades de melhoria e não como situações indesejáveis, estabelecendo um canal de comunicação direto, franco e aberto com todos esses elementos e com a equipe de saúde, desestimulando desequilíbrios e conflitos.

O médico deve, por fim, ser capaz de entender e aceitar as suas fragilidades técnicas e emocionais para esse cuidado continuado ao paciente e também à equipe, sendo capaz de solicitar ajuda às instâncias superiores, quando necessário.

"O paciente e sua família transitam entre perplexidade,
negação, negocia­ção, revolta e,
final­mente, aceitação do processo de morte"


RG - Quais são as inter­disciplinaridades atualmente envolvidas em CP e qual é a dinâmica da atuação entre elas?

JLFC - Melhor que a interdisciplinaridade é a transdisciplinaridade, pois o plano de CP deve abordar metas a serem atingidas no prazo do processo de morte. Os fundamentos desse plano de CP são:

1. todos estamos em processo de morte e isto é um fato inexorável;

2. o conhecimento do item anterior não resolve a aceitação, plena ou parcial.

Todas as ações dos profissionais de disciplinas múltiplas devem se passar e se interdigitar de forma transdisciplinar, tendo-se em mente as duas afirmações acima e o fato de que o paciente e sua família transitam entre perplexidade, negação, negociação, revolta e finalmente aceitação do processo de morte.

Assim, uma vez estabelecidos os diagnósticos médicos da primeira questão, estabelece-se um plano de cuidados que envolve ações médicas, de enfermagem, fisioterapia, fonoaudiologia, e de outros tantos profissionais necessários, voltados ao alívio do paciente, da família e da própria equipe de saúde. Isto evita excessos de parte a parte, incluindo a propria banalização do processo de morte e do evento do óbito propriamente dito.

RG - É possível a avaliação da eficácia de ações não-técnicas - avaliação do estado emocional do paciente, preparação do paciente ou da família sobre haver um assunto difícil a ser tratado - e para-farmacológicas, no que diz respeito ao alívio do sofrimento de um paciente terminal, ou mesmo na ampliação de sobrevida, com qualidade?

JLFC - Existem iniciativas neste sentido, que já foram instrumentalizadas pela Society of Critical Care Medicine em um questionário chamado Qualifying of Death and Dying (QoDD22). Este questionário está disponível na CCM de março de 2008, e desconheço ainda quaisquer resultados práticos em nosso meio.

RG - Há alguma observação ou comentário extra que você considere como contribuição significativa às reflexões sobre o tema?

JLFC - Acredito que as disciplinas da graduação médica, que privilegiam a excelência do profissional, além de efetividade de habilidades diagnósticas e de estabelecimento de planos terapêuticos e visões prognósticas, deveriam contemplar posturas filosóficas e éticas, indissociáveis de uma prática médica ancorada em conhecimento, habilidade psicomotora e afetividade voltados aos CP.

Os domínios da aprendizagem de Lewis, cognitivos, psicomotores e afetivos, deveriam ser valorizados e aplicados às disciplinas específicas de filosofia ainda no curso básico da graduação médica. Sem isso, não conseguiremos desenvolver as habilidades e predisposição à comunicação necessárias aos cuidados médicos como um todo e aos Cuidados Paliativos, em especial.

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