segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Sobre helipontos e poetas

por Ricardo Goldbach

Sou do tempo em que jornalistas brasileiros precisavam (e sabiam) escrever no próprio idioma. Mesmo antes que eu estudasse Jornalismo -- coisa que fiz tarde na vida, se é que algo na vida acontece tardiamente -- eu já apreciava e namorava a beleza da boa expressão. Jornalistas de hoje escreveriam "Sou do tempo onde", como é de praxe no portuguismo que ignora o correto uso de "onde". Aonde Onde eu estava? Ah, sim, no portuguismo, esse filho bastardo da união entre o modismo e a aprovação automática em escolas primárias e universidades, em cujas as aulas de reeducação ideológica se ensina que "crime" e "malfeito" são sinônimos, além de outras baboseiras.

Leio hoje, na edição do jornalão online, alguém escrevendo sobre as suaves inquietudes que assoberbavam um momento de trivialidades passageiras (entendo isso, também já fui apaixonado por mim mesmo; hoje em dia, me gostar me basta). Mas vai que na mesma edição está lá, em matéria sobre o mercado imobiliário:  "Dos americanos, apenas 7% escolheram um heliporto no telhado como um item indispensável para a casa de luxo".

E bota luxo nisso, já que, ao contrário do que se aprende nas páginas do feicebuque, um heliporto é composto de ponto de aterrisagem, estação de embarque e desembarque de cargas e passageiros, e por aí vai. No telhado de uma casa menor que o Taj Mahal ou o Palácio do Planalto caberia no máximo um heliponto: Mestre Aurélio ensina que "heliponto" é uma "porção de solo ou água, ou estrutura artificial, usada para pousos e decolagens de helicópteros". Por exemplo, com um balde de tinta e 25 metros quadrados de chão já dá para fazer um heliponto. Deu para perceber? Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, e ambas são muito diferentes entre si. Mas são coisas que só um jornalista medianamente preparado precisaria saber.

Já o Português e o portuguismo igualam-se com a velocidade e a letalidade de ebola linguístico cuja a vacina está sendo destruída no dia dia dia a dia, nas redações, nas escolas e no Twitter, até que um país inteiro seje seja incapaz de processar as mensagens que lê e ouve, e que se consolide de vez "o pântano enganoso das bocas" a que se referia -- ainda que em outro contexto -- o poeta Thiago de Mello.

[editado]

Dia seguinte, no jornalão, em matéria sobre necessidade de economia de água:


46 mil litros de água para um único banho? Litros de água seriam "disperdiçados"? Então tá. Estamos combinados. E mal pagos: não é de hoje que a redação do Globo acolhe reprovados no Enem.


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