Ricardo Goldbach*A receita é simples: tente matar a concorrência com falsos anúncios, depois acuse-a falsamente pela mesma prática.
É enfadonhamente comum a desconexão com a realidade que acomete empresas bem-sucedidas. E, nesta época de tecnicalidades que se expandem enquanto dormimos, fica mais difícil ainda tomar as rédeas de nosso dia a dia. A onipresente Microsoft é um caso típico de avassalador cinismo e descaso em relação à clientela - praticamente o planeta inteiro. Esta constatação não é parte de nenhuma campanha de difamação: a Microsoft não precisa de detratores, pois dá conta do recado sozinha.
A companhia cresceu à sombra de práticas predadoras, desde a cópia da interface do Windows como a conhecemos - idéia original da Apple, baseada em objetos e mouse - até a destruição dos negócios de pequenos concorrentes. Usuários do PC-XT, por exemplo, conheciam um ótimo software de desfragmentação de disco, o OPTune, da Gazelle Software. Através de acordo, a Microsoft absorveu o OPTune, incorporou-o - com menos funcionalidades (possibilidade de alteração do
interleave de setores, por exemplo) - ao MS-DOS 3.1, e o OPTune independente sumiu. A concorrência saudável desapareceu, assim como era comum sumirem os dados de muitos usuários do péssimo desfragmentador que passou a vir embutido no MS-DOS.
Após terem cometido coisas como o Windows 95 ou o Bob (alguém já ouviu falar desta interface criada por Melinda Gates, esposa de William?), os hunos de Redmond conseguiram finalmente inovar: ao saberem que a concorrência trabalhava em algo, passavam a anunciar - para dentro de meses - produtos superiores, que jamais iriam lançar ou lançariam anos depois. Como consequência, o mercado, sempre de olho num produto com a grife MS, dava preferência ao que não viria, e a concorrência era desestimulada. Esta prática foi muito comum nos anos 80 e 90, mas resiste até hoje. Às vêzes ela nem se destina à aniquilação da concorrência, apenas a iludir consumidores ou encobrir incompetências - como é o caso do WinFS; presente nas especificações do Longhorn em 2004, o supostamente inovador sistema de arquivos sumiu quando aquele sistema operacional, já batizado como Vista, foi lançado em janeiro de 2007. No decorrer daqueles três anos de expectativas em suspenso, cunhou-se, para o Longhorn, o merecido apelido de "Longwait". Já em tentativa de esmagar a concorrência da Novell no segmento de redes, o Microsoft Windows NT 5.0 (ou Windows 2000) teve seu lançamento adiado por três anos, numa estratégia comercial alavancada por problemas técnicos.
Mas o que a Microsoft fez, ao instalar-se confortávelmente na poltrona do virtual monopólio? Passou a ignorar controles de qualidade e marketing (estudo das necessidades do mercado, não confundir com publicidade), perpetrando produtos como o Vista, um erro desde o surgimento; além da ausência de características prometidas (como o WinFS), faltou comunicação proativa com fabricantes de periféricos e respectivos
device drivers. Como consequência, era impossível fazer funcionar webcams, scanners, placas de áudio ou vídeo e por aí vai. E o que a Microsoft fez, ao detectar o desastre anunciado? Tentou ganhar fôlego financeiro, inflando artificialmente as vendas do Vista, empurrando-o em operações de venda casada ao redor do mundo, embutido em equipamentos novos. Ouvi pessoalmente a confirmação desta prática, vinda de um atendente de suporte da Dell. Segundo esta fonte, havia um acordo com a Microsoft, no sentido de que a Dell não fornecesse suporte técnico a clientes que optassem pelo XP pré-instalado, ao invés do Vista. Comprador de Vista tinha suporte, comprador de XP não. E, por recusa a fornecer suporte, entenda-se também a recusa em disponibilizar
device drivers para instalação de periféricos sob o XP... Assim é fácil vender mais algumas dezenas de milhões de réplicas de um ôvo podre, não é?
Mas tem mais: falhas crônicas e já detectadas no projeto de componentes como o ActiveX ou do Internet Explorer têm sido e continuarão sendo portas escancaradas para ataques de hackers de chapéu preto (os
black hats, que se opõem aos
white hats, os do bem). O mundo gira e recebo, neste 15 de julho, um
alerta de segurança da Computerworld (mais um...), reportando que
"A Microsoft divulgou nesta terça-feira (14/7) seis atualizações de segurança para corrigir nove vulnerabilidades em seu pacote mensal de correções, conhecido como Patch Tuesday".
Uma das falhas corrigidas neste patch é um
"bug no controle ActiveX [que] havia sido relatado à Microsoft há mais de 15 meses" [grifo meu].
Esta brecha que afetava o Internet Explorer e da qual a Microsoft tinha ciência há mais de um ano, vinha sendo cada vez mais explorada em ataques a usuários nos últimos tempos. Já o conserto de outra falha, que também afeta a segurança de usuários do IE, porém descoberta na véspera da distribuição do pacote de remendos, vai ficar para uma outra ocasião. Não parece coisa de quem precise concorrer para sobreviver.
Mas, juntando o desleixo ao condenável, nesta mesma data Steve Balmer, CEO da Microsoft, declara que
o anúncio do Chrome OS é "vaporware", segundo o IDG Now. Ora, vaporware é o nome que se dá àquela prática lapidada pela Microsoft, de prometer o que não entregará, visando prejudicar a concorrência. É o software vapor, aquele que se desmancha no ar, que não se pode tocar e muito menos utilizar.
Apenas para alinhar os ponteiros, o Chrome OS é um sistema operacional projetado pelo grupo Google para utilização em netbooks, um forte concorrente de uma futura versão light do Windows 7, o sucessor do Vista. Após o lançamento do Android, para celulares e smartphones, o Google investirá em computadores propriamente ditos, de olho também no mercado de notebooks e desktops.
Mas Balmer vai mais longe e diz que "pelo que sei você não precisa ter dois sistemas operacionais. É bom ter um". Como assim, Steve? Windows Mobile 6.5 (lançado em maio de 2009), Windows Mobile 7 (já anunciado como sucessor do recém-lançado 6.5), Windows HPC Server 2008, Windows Server 2008, Windows Home Server(!), Windows Vista, Windows 7 (que tampona provisoriamente o fiasco do Vista), Windows Azure (voltado a
cloud computing, com lançamento previsto para 2010)... as superposições na linha do tempo não são poucas. A Microsoft observa tanto o quintal dos vizinhos, buscando cachorros pequenos, que mal sobra percepção para o elefante às suas costas.
Skype x Messenger, Gmail x Hotmail, Firefox x Internet Explorer, Android x Windows Mobile, Thunderbird x Outlook, Linux x Windows... é bom viver num mundo tecnológico que seja ao menos dual. Um concorrente não desprezível do Windows em alguns nichos de utilização, o Linux é - como talvez o Chrome OS venha a ser - um dos alvos prioritários do desdém da Microsoft e da massa de ecos de um mercado que parece anestesiado. Se Linux fosse realmente um brinquedo hermético de nerds, como se diz, a IBM não se daria o trabalho de pré-instalá-lo em máquinas como o IBM 390, como no caso da Caixa Econômica, por exemplo; ainda que a Caixa use a plataforma OS 390 naquele monstro configurado em dupla redundância, ele é simplesmente o responsável pelo processamento de toda a área não-bancária da Caixa - coisa de gente grande.
Já as táticas fabris, mercadológicas e publicitárias da Microsoft, estas continuam sendo coisa de gente eticamente pequena.
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* O autor tem mais de 30 anos de experiência em TI, em ambientes de mainframes, minicomputadores, supermicrocomputadores e microcomputadores, nas atividades de levantamento de requisitos, projeto, desenvolvimento, testes e homologação de sistemas, suporte, administração de dados e de bancos de dados, treinamento e coordenação de equipes de desenvolvimento.